Não posso mais assistir ‘This is
America’ sem chorar. Quando descobri o vídeo na noite de domingo, fiquei
intrigado e fascinado com as múltiplas narrativas e possibilidades
interpretativas. Dediquei horas a esse exercício de pesquisa e investigação
semiótica. Na manhã de segunda feira (07/05), tive uma reação diferente. Chorei
assistindo o vídeo e desde então, não deixei de chorar nenhuma vez.
É fácil se perder em vídeos de análise,
textos de interpretação e coletâneas de referências sobre a obra prima de
Donald Glover. O exercício é válido, é importante e se estenderá por muito
tempo. É o tipo de peça cultural que as futuras gerações estudarão minuciosamente
para compreenderem os tempos em que vivemos hoje.
Contudo, enquanto educador, faço uma
ressalva: mais importante do que entender o vídeo - suas nuances e referências
- é aprender com ele. Esse aprendizado não ocorre de forma racional e estruturada,
mas em forma de afetos. Para conhecermos algo, para aprendermos, precisamos nos
permitir afetar por aquele saber. Não existe aprendizado sem afeto; não existe
consolidação de saber, sem afeto.
Apenas para exemplificar a relevância
do afeto na aprendizagem, tomem como exemplo o caso de homens que estudam a
causa feminista. Eles leem relatos, assistem vídeos, conversam com suas amigas
e dão um show de erudição quanto à história do movimento e suas principais
pautas e, mesmo assim, agridem, abusam, oprimem e cometem as mesmas faltas que
identificam tão claramente em outros homens. Assimilar uma ideia ou um
discurso, racionalmente, não significa ter aprendido muita coisa com ele.
Isso se dá porque a compreensão
racional configura-se em uma mera artificialidade quando desvinculada da
prática e do afeto. Sentir um conhecimento é criar um vínculo pessoal,
exclusivo e significativo com os conteúdos que assimilamos. Assim como o
feminismo não existe desvinculado da prática, ‘This is America’ só ganha vida
quando nos permitimos explorar um vínculo afetivo e pessoal com a obra.
Apesar da violência do vídeo, o que
mais me tocou foi a incorporação que Donald faz de James Brown quando
sobe no carro e dança – e como dança! SZA incorpora uma releitura da estátua da
liberdade: a liberdade da comunidade negra, renegada a um espaço de relíquias
(carros antigos) e representações que transcenderam à posição de ícones de
resistência cultural (James Brown).
Para mim, essa cena representa o legado
cultural deixado pelas gerações de artistas que, mesmo perseguidos e mortos,
continuam derramando sobre nós sua influência e disposição à luta. O músico
executado no começo do vídeo ressurge tocando violão - a arte transcende as
barreiras do tempo e encontra sua continuidade em nós.
“One, two, three, Get Down!”, não
resisto e choro toda vez! Há mais de oito anos participando da cena do HipHop, perguntei-me dezenas de
vezes: qual é o meu espaço no HipHop? Qual é o meu papel na Cypher? Na dança?
Nos espaços de diálogo e construção coletiva? Por mais que a própria comunidade
me apontasse o dedo para dizer: “Fausto, você representa!”, sempre tive
relutância em assumir esse encargo. Sem consciência do porque, mantive-me à
margem.
Childish Gambino me respondeu com
lágrimas o que as palavras falharam em dizer: Eu sou HipHop!, e qualquer
tentativa de questionar o meu papel nessa comunidade por questões étnicas é
simplesmente risível. O HipHop é de qualquer pessoa que esteja pronta para
assumir o peso do seu legado e compreender todos os sacrifícios feitos para que
estivéssemos aqui hoje, cantando, rimando, dançando e festejando!
Quem queira atingir interpretações
profundas com o clip, deve entregar-se à introspecção - ir fundo na própria
ferida. Pois sem afeto, não há mudança de atitude. Sem afeto, o discurso se
esvazia em mera erudição, em exibição flácida de referências históricas e
contextuais.