sexta-feira, 11 de maio de 2018

O que aprendemos com 'This is America'?




Não posso mais assistir ‘This is America’ sem chorar. Quando descobri o vídeo na noite de domingo, fiquei intrigado e fascinado com as múltiplas narrativas e possibilidades interpretativas. Dediquei horas a esse exercício de pesquisa e investigação semiótica. Na manhã de segunda feira (07/05), tive uma reação diferente. Chorei assistindo o vídeo e desde então, não deixei de chorar nenhuma vez.

É fácil se perder em vídeos de análise, textos de interpretação e coletâneas de referências sobre a obra prima de Donald Glover. O exercício é válido, é importante e se estenderá por muito tempo. É o tipo de peça cultural que as futuras gerações estudarão minuciosamente para compreenderem os tempos em que vivemos hoje.

Contudo, enquanto educador, faço uma ressalva: mais importante do que entender o vídeo - suas nuances e referências - é aprender com ele. Esse aprendizado não ocorre de forma racional e estruturada, mas em forma de afetos. Para conhecermos algo, para aprendermos, precisamos nos permitir afetar por aquele saber. Não existe aprendizado sem afeto; não existe consolidação de saber, sem afeto.




Apenas para exemplificar a relevância do afeto na aprendizagem, tomem como exemplo o caso de homens que estudam a causa feminista. Eles leem relatos, assistem vídeos, conversam com suas amigas e dão um show de erudição quanto à história do movimento e suas principais pautas e, mesmo assim, agridem, abusam, oprimem e cometem as mesmas faltas que identificam tão claramente em outros homens. Assimilar uma ideia ou um discurso, racionalmente, não significa ter aprendido muita coisa com ele.

Isso se dá porque a compreensão racional configura-se em uma mera artificialidade quando desvinculada da prática e do afeto. Sentir um conhecimento é criar um vínculo pessoal, exclusivo e significativo com os conteúdos que assimilamos. Assim como o feminismo não existe desvinculado da prática, ‘This is America’ só ganha vida quando nos permitimos explorar um vínculo afetivo e pessoal com a obra.

Apesar da violência do vídeo, o que mais me tocou foi a incorporação que Donald faz de James Brown quando sobe no carro e dança – e como dança! SZA incorpora uma releitura da estátua da liberdade: a liberdade da comunidade negra, renegada a um espaço de relíquias (carros antigos) e representações que transcenderam à posição de ícones de resistência cultural (James Brown).



Para mim, essa cena representa o legado cultural deixado pelas gerações de artistas que, mesmo perseguidos e mortos, continuam derramando sobre nós sua influência e disposição à luta. O músico executado no começo do vídeo ressurge tocando violão - a arte transcende as barreiras do tempo e encontra sua continuidade em nós.

“One, two, three, Get Down!”, não resisto e choro toda vez! Há mais de oito anos participando da cena do HipHop, perguntei-me dezenas de vezes: qual é o meu espaço no HipHop? Qual é o meu papel na Cypher? Na dança? Nos espaços de diálogo e construção coletiva? Por mais que a própria comunidade me apontasse o dedo para dizer: “Fausto, você representa!”, sempre tive relutância em assumir esse encargo. Sem consciência do porque, mantive-me à margem.

Childish Gambino me respondeu com lágrimas o que as palavras falharam em dizer: Eu sou HipHop!, e qualquer tentativa de questionar o meu papel nessa comunidade por questões étnicas é simplesmente risível. O HipHop é de qualquer pessoa que esteja pronta para assumir o peso do seu legado e compreender todos os sacrifícios feitos para que estivéssemos aqui hoje, cantando, rimando, dançando e festejando!

Quem queira atingir interpretações profundas com o clip, deve entregar-se à introspecção - ir fundo na própria ferida. Pois sem afeto, não há mudança de atitude. Sem afeto, o discurso se esvazia em mera erudição, em exibição flácida de referências históricas e contextuais.